quinta-feira, 17 de março de 2011

“MENINO, SE FIZER ARTE, VAI FICAR DE CASTIGO”


Todos nós, mais antigos, ou ouvimos ou dissemos isso milhares de vezes. Em nosso vocabulário, o primeiro conceito que apreendemos é o de que FAZER ARTE é fazer besteira, praticar alguma traquinagem. Ou seja, em Português, começa tudo errado. No dicionário, arteiro é aquele que faz “arte”, é quem revela arte em astúcia, velhacaria... Triste começo no aprendizado de conceitos.
Em Inglês, a palavra mais usada para travessura, brincadeira de mau gosto é mischief, sem relacionar-se com a palavra que significava, no sânscrito, capacidade de dominar a matéria, moldar, ajustar, enfim, uma atividade transformadora realizada pelo homem. No latim, ARS tinha a ver com técnica, habilidade adquirida em exercício paciente e voltado para um fim definido, fosse estético, ético ou utilitário.
No idioma francês, também não vi nenhuma ligação; praticar uma travessura é “faire de siennes”. Arte é uma coisa bem vista, prazerosa, como se vê da expressão “faire quelque chose pour l’amour de l’art. Isso quer dizer que fazer uma coisa com prazer pode ser verbalizada com a palavra “arte”. Rosa foi fundamental nessa conversa sobre a palavra em francês e, direto de Paris, deu-me todas as dicas, Aprendi muito. Foi tão gentil que, para mostrar como se diz algo do tipo “como manda o figurino”, usou,como exemplo a frase: - Ana nos recebeu para jantar “dans les règles de l’art”.
O uso da palavra que mais gostei foi na expressão “l’enfance de l’art”. Refere-se a uma coisa elementar, fácil, algo como se a dizer “é uma brincadeira de criança”. Seria o lúdico que não deveríamos perder quando queremos nos expressar artisticamente, ou essa liberdade tão necessária à criação que a infância tem em abundância? Quem sabe quer lembrar a magia inerente à arte e que povoa o mundo infantil de forma tão intensa?
Adorei o ensaio com que Frederico Morais abre seu livro “A Arte é o que eu e você chamamos de Arte”. Sabemos que ela é um mistério, e por isso tantos falam nela... Não se conseguiu, porém, uma definição que possa traduzi-la por inteiro. Nem pensar em unanimidade, que é burra, como acertadamente dizia Nelson Rodrigues, quando se trata de avaliar uma obra como “boa” arte ou arte “ruim”.
Eu concordo com Marcel Duchamps – “A arte pode ser ruim, boa ou indiferente, mas qualquer que seja o adjetivo empregado,temos que chamá-la de arte. A arte ruim é arte, do mesmo modo que uma emoção ruim é uma emoção.” Posso, então, ficar mais animada e continuar com meus escritos, e até mesmo mostrar ao mundo as instalações que imaginei e que Emidio tão artisticamente tornou reais, através do milagre que Derain afirmava ser necessário, já que, para a Arte, não bastam as idéias,
Oscar Wilde, de quem sou fã, considerava os artistas mentirosos profissionais, e que jamais podemos acreditar no que dizem. Precisamos, sim, olhar sua arte para sabê-los. E Picasso tinha certeza de que a Arte não é a Verdade, mas a mentira que nos ajuda a compreendê-la ... pelo menos, aquela que somos capazes de entender. E Nietzsche encerrou o assunto dizendo que temos a Arte para não morrer da Verdade.
Na mesma linha, Umberto Eco, sempre brilhante, ensinou que toda obra de arte, mesmo enquanto pronta, é “aberta”, pois será interpretada das mais diferentes maneiras, embora não corra o risco de ver alterada sua irredutível singularidade. Veremos, então, a tal verdade a que Picasso se referiu?
Amédée Ozenfant, pintor cubista francês, afirmou que “A arte demonstra que o ordinário é extraordinário”. E é essa a alquimia do artista, transformando metais inferiores no mais puro metal Em crônica sobre a Beleza, comentei que Chico Buarque usava as mais simples e cotidianas palavras de nossa língua para dizer, em suas maravilhosas músicas, que alguém morreu na contramão atrapalhando o tráfego, para falar do feijão que ela faz todo dia sempre igual, da gente humilde com cadeiras na calçada... É, sem dúvida, um dos nossos maiores alquimistas.
Pergunta importante: onde deve estar a Arte? Lebel afirmou que deveria, literalmente, descer à rua, sair do zôo cultural, concordando com Vlaminck, que tinha horror ao odor e à monotonia dos museus, Camnitezer respondeu com veemência – “O fato de estar na rua não faz a obra mais democrática, ao contrário, pode aumentar o caráter autoritário de seu discursos”. E como fico eu no meio desse tiroteio? Já não sei se viro uma grafiteira marginal, se me tranco na Academia Brasileira de Letrinhas...
Fico profundamente feliz com os emails que recebo de meus fiéis leitores que, com o maior carinho, fazem com que eu continue com vontade de escrever. Comentam o tema que abordei, contam casos parecidos, elogiam, enfim, respondem ao estímulo que pretendo passar com meus textos. Toda obra de arte é feita duas vezes, uma pelo artista, quando a cria, e outra pelo espectador, quando a observa e absorve, transformando, dentro dele, as sensações despertadas.
Goethe, outro dos meus ídolos, acreditava que existem três tipos de leitores: o primeiro goza sem julgar; o segundo julga sem gozar, e o terceiro julga gozando ou goza julgando e é justamente esse quem recria a arte. Só não quero um tipo que julgue “me” gozando.
Salvador Dali, para mim, fez as duas “artes” – traquinagem e arte no sentido que o mundo dá à palavra. Pelo menos, era muito arteiro e levado quando abria a boca. Chegou a dizer que, quando pintava, fazia ouro, pois cada quadro dele produzia um polpudo cheque que era logo convertido no metal nobre. Dizia, ainda, que seu exibicionismo mascarava sua verdadeira personalidade – ao atrair olhares, com seu dandismo provocante, fugia desses mesmos olhares, mostrando-se exatamente como não seria.
Ben Vautier adora polemizar, com suas pinturas-textos e instalações. Atira frases do tipo “A arte é inútil”, “Tudo é arte. Nada é arte”. Pois é... tudo e nada. Nem os gênios conseguem traduzi-la? Não faz mal. A Arte não precisa ser dita. Precisa ser sentida.
Depois dessas elucubrações todas, minhas e de tantos outros, decidi seguir o conselho de Sócrates, que dizia que a Arte é longa e a Vida é curta. Vou deixar viver, com muita liberdade e para o sempre que for possível, a menina levada que existe aqui dentro, que quer ”pintar o bordar” de todos os jeitos que a vida permitir. E vou adorar ouvir que ficarei de castigo se insistir em fazer arte.

Um comentário:

  1. Tem piada, aqui no Portugal da língua portuguesa não se usa essa expressão de "fazer arte"... aqui diz-se, como os franceses, "fazer das suas"...

    E se essa "arte" daí, desse Brasil que eu amo, vem de artimanha? De ardil, artifício, astúcia, dolo, endrômina, fraude, intrujice e obra?

    Será que não se ajusta melhor?

    Arte é arte, e pressupõe também jeito, habilidade,talento... para traquinagem, besteira, astúcia, velhacaria...

    Ahahahah!

    A língua portuguesa é muito traiçoeira... é o que se diz por cá!

    ResponderExcluir