segunda-feira, 5 de outubro de 2009

LIBERDADE, LIBERDADE...

LIBERDADE, LIBERDADE...
Ana Hertz
Setembro, 2009

Perceber-se curado de um amor platônico, daqueles completamente impossíveis, proporciona uma das melhores sensações de liberdade que alguém pode saborear. E lá fui eu até a Filadélfia para, além de conhecer mais um lugar, tentar livrar-me da paixão dessa espécie que sinto desde os 17 anos. Um tempo longo demais. Benjamin Franklin não deve nunca ter imaginado que ficaria gravado para sempre na minha memória poética.
Como queria vasculhar o passado, sobretudo a segunda metade do século XVIII, escolhi a dedo o hotel. Estar no Historic District da cidade considerada o berço da América desde bem cedo a cada dia foi uma bela idéia. Caminhava seus vários quilômetros quadrados sem sentir qualquer desconforto, embriagada pelo que podia descobrir a cada esquina. Meu joelho e meu pé foram cúmplices maravilhosos, deixando para trás as fraturas sofridas.
Informações históricas e dados precisos não eram meu objetivo maior, pois, sem dúvida, no Google eu poderia obter o que quisesse. Queria mais. Gostaria de poder sentir com mais intensidade esse sentimento que move o ser humano na busca pela liberdade, essa busca que o faz ultrapassar seus próprios limites, arriscando-se a cada passo do caminho, sonhando com aquilo que ele nunca teve... ou havia perdido... e a Filadélfia me oferecia essa oportunidade.
Além de sua arquitetura, seus moradores se orgulham dela por quase tudo, também chamada de cidade do amor fraternal. Uma das mais famosas esculturas que estão la é a que traz a palavra “LOVE” em metal vermelho. Nenhum turista que se preze deixa de posar para uma foto mostrando a obra e eu me incluo na lista. E explicar o nome adotado fica muito fácil - vem do grego Philos, que quer dizer amor, amizade, e adelphos, que significa irmão.
Uma das coisas que mais me encantou foi saber que há uma lei municipal determinando que 1% do orçamento das construções seja aplicado em algum projeto cultural de interesse público. Sonho de consumo de todos aqueles que gostam de arte! Pena que, no Brasil, ainda estejamos precisando de muitos “por centos” para a saúde, educação, saneamento básico... Vai levar um tempo antes que alguma coisa parecida venha favorecer a cultura. E sabemos que a única saída do ser humano passa pela arte.
Com prédios imponentes, a cidade exibe, com orgulho, o resultado de um cuidadoso projeto urbanístico. O primeiro idealizador? William Penn, no final do século XVII. Simplesmente inacreditável o fato de que esse homem tenha se preocupado, no século XVII, com os séculos que viriam depois. Hoje em dia, poucos administradores vão além do dia seguinte... Suas praças foram construídas para separar os diferentes quarteirões, dificultando, assim, a propagação dos incêndios que destruíam, num piscar de olhos, uma cidade inteira, como acabou acontecendo com Chicago duzentos anos depois. A Filadélfia é considerada a melhor representante da história da arquitetura americana, e isso é mais um dos numerosos motivos para que seus habitantes se orgulhem dela.
Como em qualquer grande cidade, porém, sempre aparecem problemas que devem ser resolvidos de forma definitiva. Foi elaborado, em 1984, um projeto sensacional para resolver o problema dos graffitis que, de forma desordenada, poluíam visualmente aquele belo espaço. Seus idealizadores foram brilhantes. Em vez de proibir, pois tem mais sabor tudo aquilo que não nos é permitido, trataram de canalizar a energia criativa dos grafiteiros para a construção de murais. E a organização sem fins lucrativos, que conta com a participação da iniciativa privada, já produziu cerca de dois mil e oitocentos murais. Se mais não fosse, proporcionou a mais de vinte mil jovens carentes a oportunidade de trabalhar com arte! E sempre melhor redirecionar do que proibir. Caetano dizia que é proibido proibir e, nesse caso, provou-se que foi perfeito.
Mudando um pouco de assunto - o que é melhor? A ficção ou a realidade? Bem, a discussão já dura séculos, literalmente. No caso da Filadélfia, acho que o mundo real pode ser bem mais interessante do que a ficção. Pude ver inúmeras esculturas, a maioria belíssima, e por isso é quase impossível apontar apenas uma como preferida. A dificuldade não se prende apenas no aspecto artístico da peça, mas também quem ela está representando.
Posei ao lado da estátua do Benjamim Franklin, que já revelei ser minha paixão há tantos anos, e eternizei o momento tirando um retrato. Uso a palavra “retrato”, antiquada, para dizer o quanto voltei no tempo. No entanto, recusei-me a fazer o mesmo com a de Stallone, ou melhor, de Rocky, um Lutador, ou Rocky Balboa, sei lá. Tirei de longe uma foto, para levar para meu neto Igor, sem deixar que minha imagem fosse capturada ao lado. Acreditem se quiser - fica nos jardins do Museu de Arte da Filadélphia!
O mais grave de tudo isso, porém, reside no fato de que essa estátua já foi “personagem” de vários filmes, um da estatura de “Philadelphia”, com Tom Hanks. Enquanto isso, O Pensador, de Rodin, não deve ter tido tanta sorte. E o que é da maior ironia - o Conselho Diretor do Museu, depois de anos a fio resistindo a que Rocky ficasse em seus jardins, agora aprova que suas réplicas sejam vendidas na sua lojinha! Sempre tem alguma coisa que atrapalha...
Nesse mesmo Museu de Arte, tirei uma foto que, devo confessar, deixa-me emocionada só de pensar. Meu pai estudou na Filadélfia, em 1941, fazendo um curso de especialização em Odontologia. Quando eu decidi ir lá, minha irmã enviou uma foto dele na escadaria que leva à entrada principal do prédio. Atrás, eu via um prédio alto, um cruzamento de avenidas com um chafariz no meio, frondosas árvores... Não pude resistir e postei-me no mesmo lugar, esperando passar alguém a quem pudesse pedir que registrasse aquele momento. Logo, logo passou um japonês com uma câmera daquelas de fazer inveja a Sebastião Salgado e eu, na maior sem-cerimônia, pedi-lhe que fotografasse com minha humilde camerazinha. Imagino que quase teve um infarto ao verificar a qualidade de meu equipamento... mas não se deu por achado e clicou.
Vi as diferenças que o progresso trouxe, mas não houve mudança significativa. O prédio mais alto parece um nanico se comparado às novas construções, as copas das árvores escondem muita coisa... mas o chafariz continua onde sempre esteve. E foi com a mais profunda emoção que pude “estar” naquele belíssimo museu americano com meu pai, a quem perdi há mais de quarenta anos. Os sessenta e oito anos que se passaram desde que ele esteve passeando naquelas galerias não conseguiram atrapalhar nosso passeio. Um momento do passado que se fez presente.
Falei, falei, mas ainda não consegui conversar sobre a liberdade. O drama é que a Filadélfia tem muita coisa interessante para ser comentada, e acho melhor que essa conversa tenha um capítulo de continuação. Um é pouco, dois é bom, mas três seria demais!