domingo, 4 de março de 2012

A ARTE E EU

Poucas meninas foram tão levadas quanto eu... arteira, diziam minhas avós. Deixava muitos meninos no chinelo e várias vezes fui "relaxar" lá fora para que os professores pudessem fazer o trabalho deles em paz. Tem gente que diz que, até hoje, continuo um pouquinho arteira.

Mas a Arte propriamente dita, de cuja história minha mãe era professora, sempre me fascinou, e com a idade fiquei mais encantada ainda. Aproveitando minha temporada aqui no Texas, fui ao Fine Arts Museum para uma fantástica exposição sobre Tutankamon. Os objetos encontrados na tumba do Rei-Menino, falecido aos 18 ou 19 anos, são realmente deslumbrantes, e adorei descobrir mais coisas sobre os faraós. Completei a tarde visitando a exposição permanente do museu, sem dúvida uma primorosa mostra da Arte através dos tempos.

No Museum District de Houston estão os principais centros culturais da cidade, e em alguns casos é possível ir a pé de um lugar para o outro. Dias depois de Tutankamon, voltei a Houston e fui revisitar The Menil Collection, importante espaço fundado em 1987 pela francesa Dominique de Menil. Ela e o marido vieram da França fugidos da segunda guerra e, com a fortuna que amealharam por aqui no ramo do petróleo, construíram, no final dos anos 60, a fabulosa Rothko Chapel. Após a morte dele, além da Collection, a Sra. de Menil mandou construir a Byzantine Fresco Chapel e a Cy Towmbly Gallery. Sem entrar em considerações mais profundas, cabíveis, sem dúvida, acredito que, de certa forma, pensaram em devolver ao país que os acolheu esses belíssimos centros culturais. A entrada é franca em todos eles.

Na Colletion, temos desde um objeto em terracota datado de 500 AC até obras da arte mais contemporânea do planeta, passando por Picasso, Magritte e outros tantos. Não se vê um texto explicativo, nada além do título da peça, do nome do autor, país, material usado, medidas, enfim, apenas os principais dados, para que seja possível usufruirmos das sensações que as obras despertam sem qualquer interferência do racional, do informativo.

Esquecida do mundo, acompanhava a trajetória do homem no seu modo de ver e retratar o mundo, quando de repente, não mais que de repente, vejo um queijo suiço de cera, cheio daqueles buraquinhos característicos, com a "casca" superior recoberta de longos e verdadeiros fios de cabelo! Eram mesmo humanos, como constava da ficha técnica. Para completar meu susto, logo na parede seguinte, vinha colado um livro antigo, das edições Penguin... nada mais além do livro grudado. Resumindo a ópera, a "arteira" aqui ficou olhando, olhando, provavelmente com cara de idiota. Será que esse livro está colocado de forma especial, e minha ignorância não permite que eu perceba? E esse queijo cabeludo quer dizer alguma coisa? O que é isto?

E não parou por aí. Na lojinha da galeria, encontrei a foto de uma famosa obra, já minha conhecida de outros carnavais, e que acho realmente assustadora. O artista, Edward Kienholz, americano, intitulou-a The Future as Afterthought. Quem tiver tempo, entre com o título no Google. Entendi na hora a mensagem, explícita e perfeita e, filosoficamente, assino em baixo; porém, é uma expressão artística muito agressiva, com a qual ainda não me acostumei. Consciente de minha ignorância, procuro entender, para que possa, um dia, aceitar e gostar Por isso, mesmo sendo um pouco como aquele menino da história da roupa nova do rei, não vou gritar: "- O Rei está nu"! Não sendo boba e certa de estar errada na avaliação, vou dizer bem baixinho se gostei ou não, e apenas para meus amigos.
A obra tem não sei quantas bonecas de plástico, algumas sem braço, outras sem cabeça, vários braços e pernas avulsos, tudo amarrado com fita gomada, no alto de uma coluna de madeira, daquelas que usamos para colocar vasos ou estátuas nos cantos da casa. Esse conjunto é complementado pela cabeça de uma boneca com expressão de choro, boneca essa que vem colada, solitária, sobre a base da coluna. Para mim, realmente, um pesadelo. É claro que o futuro é assustador, se pensarmos na superpopulação, na fome, na violência que grassa pelos quatro cantos do mundo e, sobretudo, na ameaça da bomba atômica. Em tempo - para transmitir isso, a obra lembra a nuvem-cogumelo da explosão nuclear. Esse pavor está presente em todos nós, mas é uma peça que não quero olhar muito e, por me incomodar, quero "passar batido".

Para continuar minha aventura pelo que mais recentemente vem sendo feito, fui ao Contemporary Arts Museum, um espaço pequeno mas sempre com exposições bastante interessantes. Estão agora com obras de vinte e duas artistas, e querem mostrar o quanto a arte feita por mulheres contribuiu para o desconstrutivismo dos anos 70 e 80. Vi coisas bárbaras, enquanto outras me animaram a colocar em prática várias idéias recentes, pois tenho a pretensão de achar que posso fazer coisas tão boas quanto algumas delas. Não se assustem, é um baita de um exagero, de autopromoção, apenas para criar um clima... mas realmente acredito que seja capaz de alguma coisa legal.

Numa das paredes, vi o cartaz preparado pelas Guerilla Girls com a denúncia de que apenas 5% das obras expostas no Metropolitan Museum de Nova York são de artistas mulheres, enquanto 83% dos nus retratados e das esculturas são femininos! Não é bem a presença que mais desejamos, e por isso temos que arregaçar as mangas e ocupar os espaços, já que espaço se ocupa, nunca nos é dado de graça. Em tempo, essas Guerilla Girls começaram a atuar em 1985, quando foi aberta uma exposição em NY com obras dos que seu curador considerava como os 169 "melhores" artistas da arte contemporânea. Nessa seleção, todos os artistas eram brancos, europeus ou americanos, e apenas 13 eram mulheres. O tal curador não conseguiu disfarçar seus variados preconceitos, tornando-se alvo das críticas de uma boa turma.

Depois da arte contemporânea, fui para a Byzantine Fresco Chapel, cujo nome já diz tudo. Datados do século 13, os afrescos vieram de Chipre e, segundo o acordo feito com a Fundação The Menil, pertencerão ad eternum ao governo e à igreja daquele país, que foi, bom lembrar, o primeiro lugar do mundo a ser governado por um cristão. Vieram "alugados". Simplesmente deslumbrante a concepção arquitetônica que une o antigo sagrado ao novo, já que foram usados, no prédio, concreto, aço e vidro e, no teto dessa construção super moderna, estão os afrescos ! A estrutura fragmentada do vidro traz uma leveza impressionante para um lugar sólido como qualquer outro templo religioso feito de concreto. Luz e sombra fazem igualmente um jogo de contraposição, como se a confirmar que o antigo se integra suavemente ao atual, trazendo um novo significado.

Para terminar o passeio, fui até a Rothko Chapel. O casal de Menil, que conhecia as capelas francesas com trabalhos de Fernand Léger e de Matisse, além da capela de Ronchamp, de Le Corbusier, decidiu construir uma em Houston na mesma linha. Para a empreitada, foi contratado o pintor Mark Rothko, que teve a mais completa liberdade para criar. O artista trabalhou com três importantes arquitetos, e foi construído um templo octogonal, capaz de abrigar 14 imensas telas pintadas por ele, Rothko.

Os dois corredores que nos levam àquele maravilhoso espaço oferecem, em duas prateleiras baixas, os livros sagrados das religiões com mais seguidores. Estão lá a Biblia, a Torá, o Corão, o Cânone Pali, do Budismo, todos em mais de uma língua.

No interior da capela, construída para que os fiéis das diferentes religiões possam meditar, encontramos apenas 4 bancos de madeira, em círculo, e as telas nas paredes. Como disse John de Menil - "É um lugar onde um grande artista, pensando no Absoluto, teve a coragem de pintar quase nada e fazer isso magistralmente." As telas, enormes, mostram apenas o preto ou o roxo, sem qualquer símbolo, nada que faça constraste, nada que direcione o pensamento... É de tirar o fôlego Temos a sensação de estar em solo sagrado, sagrado pela paz, pelo silêncio comovente dos que ali vão orar. Sente-se apenas o ser humano em sua mais profunda consciência. Quem vier por esses lados, não pode perder.

Uma obra de arte, segundo Hauser, é um desafio e, para interpretá-la, usamos nossos maiores esforços para encontrar um significado. É arte qualquer criação que nos afete, que nos desperte sensações, sejam elas quais forem. O artista, quando cria, deseja comunicar-se com cada um de seus espectadores, que reagirá com a alma, através de suas percepções, mas sempre com liberdade para gostar ou não do que está vendo.

Quando se trata de arte contemporânea, sinto-me dividida. Vejo coisas fantásticas, adoro Vik Muniz, Waltercio Caldas, e chego a me aventurar fazendo alguns objetos interessantes. Desses passeios culturais, devo dizer que achei o conjunto das obras muito bom, mesmo continuando desconfiada e sem entender bem algumas delas. Por outro lado, espero que todos me perdoem as heresias perante o compromisso que ora assumo de que vou me aprofundar no tema e deixar de falar besteira.

No final das contas, tenho certeza de que, ainda hoje, sou muito mais arteira do que artista. Sei que a definição de arte é controversa, sobretudo na filosofia contemporânea, e o que é vulgar para uns pode ser lírico para outros. Vou tentando, pelo menos, ser uma boa artista no palco da vida, nesse palco que não dá chance para um ensaio geral, mas que oferece, se prestarmos atenção, grandes possibilidades de mudança de enredo no segundo ato.