quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Q.I. DE AMEBA

“Além de atuarem sobre a distensão celular, as auxinas produzidas pelo meristema apical do caule inibem a atividade das gemas axilares. Fala-se, então, em dominância apical. Ao se retirar a gema apical, verifica-se que as gemas axilares saem do estado de dormência, dando origem a ramos laterais, folhas e flores.“ Juro que isso estava escrito em um livro de Ciências para o Segundo Grau. Como alguém pode imaginar que vai despertar o interesse dos jovens de 16 ou 17 anos com um texto como esse, enquanto o mundo, aqui fora, oferece coisas tão mais interessantes e menos enroladas?

Lembrei das auxinas ontem, ao espichar o olho para o livro do meu companheiro de assento no metrô. O tal senhor provavelmente é psiquiatra, psicólogo, ou coisa do gênero, já que, na contracapa da obra, apareciam os nomes de Freud e Lacan. O capítulo falava no aparente do aparente. Mesmo sendo algo bem deselegante, tentei ler um dos parágrafos da página aberta bem pertinho de mim. Seria mais fácil se o texto fosse em grego... Não consegui saber do que se tratava e só posso atribuir isso a um castigo divino pela minha indelicadeza em ficar olhando livros alheios por cima dos ombros. Naquele tal texto didático de Ciências que me assustou, pelo menos deu para entender que eram estudos sobre vegetais. No aparente do aparente, nada me apareceu aos olhos, ao cérebro ou à memória.

E lá fui eu, uma senhora moderna, procurar o que poderia ser isso na enciclopédia do século XXI, mesmo sabendo que nem sempre essa fonte é confiável. O Google logo me ofereceu um sítio da Editora Rocco sobre “O Segredo Judaico da Resolução de Problemas”, de Nilton Bonder. O autor faz um verdadeiro passeio entre as dimensões que atribui à Realidade, traduzindo-as em quatro mundos - o aparente do aparente, o oculto do aparente, o aparente do oculto e o oculto do oculto. Chico Buarque, quando compôs Construção, fez uma farra daquelas trocando as palavras de cá para lá. No comecinho, diz que alguém tropeçou no céu como se fosse um bêbado, enquanto, no final, diz que tropeçou no céu como se ouvisse música... Em outro verso, tinha atravessado a rua com seu passo bêbado, e tinha dançado e gargalhado como se ouvisse música... Quando um poeta joga as palavras de um lado para outro brinda-nos com a mais bela poesia. Enquanto isso, alguns intelectuais, com o mesmo jogo, causam um curto circuito no cérebro da gente!

O texto se propõe a demonstrar que não se pode olhar os problemas de forma rígida, dentro de um único contexto. Fiquei tentada a comprar o livro, mas desisti logo, lembrando-me de que não consegui nem mesmo entender o tal parágrafo do vizinho. Isso me confirma a sensação de que alguns intelectuais acham que a demonstração do saber passa por explicações muito complexas, ininteligíveis. Resultado - nós, pobres mortais, ficamos alijados do processo de conhecimento ao desistirmos no primeiro parágrafo.

A sorte é que acabo me divertindo horrores com minha ignorância, e tampouco me abala a autoestima não compreender, por exemplo, o que Roland Barthes queria dizer quando afirmou que a burrice não estaria ligada ao erro.Explicou que “Sempre triunfante (impossível de vencer-se), o seu triunfo tem a ver com uma força enigmática: É o estar-presente nu e cru, no seu esplendor. Daí um terror e uma fascinação, a do cadáver. (Cadáver de quê? Talvez da verdade: a verdade como morta.) A burrice não sofre (Bouvard e Pécuchet: mais inteligentes, sofreriam mais). Então, ela está presente, obtusa como a Morte.” Juro que não inventei isso tudo... podem conferir no livro “A Imagem”, de 1977.

Cá com meus botões, pergunto-me se essa linguagem complicada seria o jeito de, disfarçadamente, manter o conhecimento longe da massa ignara - conhecimento é poder, já dizia Bacon no século XVII. A verdade é que, em alguns momentos, sinto total afinidade com a ameba, que representa uma das formas de vida mais simplificadas do planeta. Uma única célula... não consegue nem ter dois neurônios! Até para a reprodução, nesse protozoário a coisa vai pela forma mais fácil - divide-se em duas e pronto, resolvido o problema da perpetuação da raça, sem obedecer regras, esperar o macho querer, sem envolver qualquer sentimento, cobrança e sem precisar agradar o outro. Em compensação, é um processo muito do sem graça.

Voltando ao aparente, ao oculto, assunto do tal livro que compartilhei no metrô. No primeiro momento, tudo me parece óbvio, pois aprendi há tempos que as aparências enganam e que não podemos acreditar que tudo que vemos é realmente como estamos vendo. Acreditei que tinha entendido tudo – que temos o aparente do aparente, o aparente do oculto, o oculto do aparente e o oculto do oculto. Mas como o livro tem 200 páginas, a explicação não deve ser tão simples assim. Ou tem aí um pulo do gato que eu, na minha ignorância ímpar, não percebi, ou, então, a coisa é simples mesmo e o sábio está querendo complicar. Não me considero oligofrênica, nem mesmo em seu grau mais leve, mas tem horas que meu cérebro não apresenta qualquer diferença em relação ao daquela ameba já falada. Meu quociente de inteligência não se localiza entre 0 e os 90 graus e, sim, de menos 90, de tão difícil que se torna o entendimento de certos textos. Por isso, classifiquei-me como ameba quando desconfiei ter um único neurônio, razão pela qual não entendi o que Barthes falou sobre minha burrice!

Enfim, hoje, finalizo o dia com a certeza de que sou uma ameba; infelizmente, apenas uma ameba comum, não uma ameba dançante, daquelas que a Pietrina Checcacci eterniza em seus lindos quadros. E como Sócrates dizia que “a maneira mais fácil e mais segura de vivermos honradamente consiste em sermos, na realidade, o que parecemos ser”, vou ter que descobrir o que pareço ser. Para ter certeza disso, vou ter que entender, antes, o que é o aparente do aparente, o aparente do oculto, o oculto do aparente e o oculto do oculto... Quando isso acontecer, provavelmente vocês poderão ver-me como realmente sou – uma ameba morena... mas burra.

Renoir dizia que um intelectual seria o homem que se referia às coisas simples de uma forma complicada, e que um artista seria o homem que diria uma coisa difícil de forma simples. Não seria uma ótima ideia se todos nos inspirássemos nos artistas ? Sonho com isso, ainda mais agora, que me encontro em situação desesperadora por causa dessa sofisticação toda usada pelos que parecem mais inteligentes. Não consegui entender o que um intelectual conhecido quis dizer quando afirmou que um filósofo “vive o descontínuo em relação à explanatória de antigo ritmo”. Estou esperando que alguém me ajude na tradução... esperando sentada, é claro.