quinta-feira, 5 de novembro de 2009

ABRE AS ASAS SOBRE NÓS...
Ana Hertz
Outubro de 2009.
Henry Brown, escravo na Virgínia, mesmo não tendo sofrido qualquer violência física, não queria continuar escravo. Dizia que, mesmo sob condições consideradas ótimas, a escravidão era insuportável. Quando sua mulher e filhos foram vendidos para uma fazenda em outra cidade, decidiu que havia chegado a hora. Construiu uma caixa relativamente pequena, com dois furos para que o ar entrasse, trancou-se lá dentro com uma garrafa de água, uns biscoitos e foi “despachado” por trem para a casa dos amigos que tinha na Filadélfia, onde reinava um clima diferenciado de liberdade. Logo que chegou ao destino na tal caixa, virou Henry “Box” Brown, nome com que ficou conhecido para todo o sempre. Do mesmo jeito que, nas nossas terras ao sul do Equador, um famoso apelido também se incorporou ao nome real – Luiz Inácio “Lula” da Silva. Box Brown, então, passou a ser um dos maiores divulgadores das idéias abolicionistas, levando a discussão para o resto do país; isso causou ao pobre homem grandes problemas, como acontece com todos aqueles que se insurgem contra o “status quo”. Para não ser devolvido ao dono, precisou fugir para a Inglaterra, de onde somente conseguiu voltar muitos anos depois para, finalmente, viver o resto da vida como homem livre.
Aprendi sobre Henry Box Brown através dos contadores de histórias da Filadélfia. Das 11 às 5 da tarde, em onze diferentes bancos de praças do Distrito Histórico, eles contam, para os que ali aparecem, diferentes histórias daquele tempo em que o país lutava para ser livre. Fiquei fascinada com o que ouvi desses contadores, alguns atores de teatro, outros professores, todos animadíssimos. Não falam dos figurões, que todos conhecem, e sim das “figurinhas”, daqueles seres humanos até então desconhecidos, mas que se tornaram lendas por seus feitos ou seus ideais de liberdade. Outros que me impressionaram foram os “rangers”, aqueles que orientam os visitantes nos monumentos e principais pontos da cidade. São todos muito bem informados, e não apenas em relação à história americana. Conversei com um deles, a quem perguntei a razão de não haver folhetos explicativos em Português, pois havia encontrado em inúmeras línguas, até em polonês.... Explicou que talvez estivessem esgotados, mas que havia, sim. E começou a conversar sobre as grandes navegações portuguesas, sobre as colônias lusas na África, nossos “pagamentos” em recursos naturais que iam direto para a Inglaterra, e sobre as colônias espanholas mandando a prata do Novo Mundo direto para os banqueiros internacionais... Foi bom saber que há, em outros pontos do mundo, quem saiba um pouco mais sobre o Brasil. Não tem mais tanta gente achando que nossa capital é Buenos Aires e que falamos espanhol.
Outro relato que me chamou atenção foi sobre uma escrava da esposa de George Washington, figura histórica que me surpreendeu negativamente. Tinha escravos! Queria a independência americana, tinha ideais de liberdade, mas não abria mão de sua condição de dono de seres humanos. Enfim, a escrava particular de Martha Washington, Oney Judge, uma noite, enquanto o casal jantava, aproveitou para ir embora e nunca foi recapturada. Ficou famosa por ter ousado fugir da casa do Presidente dos Estados Unidos e afirmou, anos depois, que sempre foi muito bem tratada, mas que não queria ser eternamente propriedade de alguém!. Achei o máximo! Em seu testamento, Washington registrou que todos os 250 escravos da família somente deveriam ser libertados após a morte de sua esposa. Ou seja, enquanto viveram, aproveitaram-se bastante dos pobres coitados.
Um ponto turístico muito famoso da cidade é a Elfreth’s Alley, a mais antiga rua dos Estados Unidos ainda existente, onde residiam artesãos e artífices das mais diversas origens no início do século XVIII. O lugar é lindo, com casas coladinhas umas na outras, de um charme só! Trinta e duas, construídas entre 1702 e 1836, ainda estão muito bem preservadas. Cada uma vale a bagatela de um milhão de dólares, mesmo sendo mínima!Desde o começo de sua história, a comunidade da Filadélfia estabeleceu uma grande liberdade religiosa; não foi à toa que, nessa cidade predominantemente protestante, foi rezada a primeira missa pública da religião católica, isso em 1730. William Penn, seu fundador, havia sido perseguido por ser um quaker e não queria que, em sua colônia, isso acontecesse com quem quer que fosse. Ali conviviam judeus, católicos, quakers, protestantes e outras minorias que se uniram em congregações, algumas delas existindo até hoje, sempre procurando manter uma melhor relação entre as diferentes crenças. Se todos pensassem assim... Para divertir um pouco, vale dar essa nota - vi um padre, devidamente paramentado, deixar o pátio da igreja num belíssimo conversível vermelho! Que inveja! Como diria minha avó, sinal dos tempos.
Na verdade, poderia escrever sobre um milhão de coisas que vi e aprendi nessa viagem à Filadélfia, mas acho que falar no presídio que visitei, assunto que tem a ver com liberdade, e em Benjamin Franklin, esse extraordinário personagem da história americana, já vai ser o suficiente para um longo texto. De 1829 a 1971, quando fechou suas portas, a Eastern State Penitentiary foi assunto bastante controverso. Seu projeto arquitetônico foi copiado por cerca de 300 prisões mundo afora, inclusive aqui no Brasil. A teoria correcional era manter o prisioneiro confinado e trabalhando o tempo todo, afastando-o de ambientes “favoráveis” ao crime. Isolado, poderia arrepender-se e penitenciar-se (daí o novo nome para as prisões – penitenciária). O sistema era tão rígido que usavam máscaras nos prisioneiros para que não se comunicassem nem mesmo com os guardas! Charles Dickens, quando esteve nos Estados Unidos, visitou o complexo e ficou chocado. Considerou o processo adotado de extrema crueldade e baseado em princípios totalmente equivocados. Al Capone esteve encarcerado por lá e outro famoso prisioneiro foi um gato! Como o bichano havia matado o cachorrinho da esposa do Governador, foi “sentenciado” e recebeu um número, como qualquer outro criminoso. Existe uma versão mais aceitável para essa história tão maluca. O Governador pensou em animar os prisioneiros e mandou o animal para que fizesse um pouco de companhia a eles. Como não podia mostrar qualquer sinal de abrandamento nas regras, inventou a história do “gato assassino de cachorros”.
Benjamin Franklin, minha paixão platônica por tantos anos, era escritor, filósofo, cientista, inventor, diplomata, dentre outras tantas coisas. Preocupado com os diversos problemas da comunidade, organizou o primeiro grupo de bombeiros voluntários nas colônias, bem como a primeira companhia de seguros contra incêndios. Inventou o pára-raios, as lentes bifocais e mais uma lista enorme de coisas. Filosofava de maneira bem popular, e com isso tornou-se famoso. Um de seus dizeres que gosto muito diz que a gente deve ficar com os olhos muito bem abertos antes do casamento, mas que, depois da celebração, deve mantê-los meio fechados! Nunca vi conselho mais sábio!
Continuo sem saber do que gostei mais. Foram dias interessantíssimos, de grandes descobertas, de alegria em ver como a liberdade vem conquistando o mundo. Quando ouvia uma história, qualquer que fosse, abstraía-me da nacionalidade, da condição social, da cor e do sexo daquele personagem e absorvia um pouco do eterno desejo de ser livre que o ser humano traz dentro de si desde o início dos tempos.
Por outro lado, se alguém imagina que foi fácil para aquela nova nação libertar-se do jugo inglês, está redondamente enganado. A luta continuou por vários anos. Dos 56 que assinaram a Declaração da Independência americana, muitos foram torturados até a morte como traidores, e outros tantos morreram lutando para preservar os ideais de liberdade. A grande maioria, oriunda de famílias ricas, perdeu toda a fortuna, e não poucos viram suas famílias dispersadas... mas não desistiram. Valia a pena continuar. O Liberty Bell exibe sua fenda, uma ferida exposta, como se o cobre no qual foi forjado soubesse que não poderia ser inteiro porque ainda está longe o tempo em que todos os homens serão livres, donos de seu próprio destino. Ficou mudo, como a nos lembrar do longo caminho a percorrer e do preço, por vezes muito alto, que se paga pela liberdade. Eu dizia, em alto e bom som, que Benjamin Franklin era meu amor platônico. Passados mais de 40 anos, descobri que não era amor platônico coisa nenhuma. Foi bom ter ido até a Filadélfia e poder estar mais “perto” dele, embora com quase 300 anos nos separando. Aprendi muito sobre suas idéias, obras, seu imenso desejo de fazer melhor o mundo em que vivia, saboreando com tranquilidade sua presença tão marcante em toda a história daquele país. Agora, possa afirmar que me sinto mais confortável e que já me libertei. Era apenas uma admiração enorme... Queria era ter sido sua secretária particular, aquela que o ouviria enquanto pensasse alto, aquela que, talvez, passasse a limpo seus rascunhos...
E sobre o amor platônico, cantado por poetas desde o início dos tempos, acabei aprendendo muito. Pelo que descobri, esse é o mais incompreendido conceito de Platão. Todos acham que é apenas o amor assexuado, acético, daquele em que as pessoas não ficam próximas fisicamente. Mas não significa isso, não, trazendo algo muito mais profundo do que essa idéia simplificada. Sendo por demais complexa, sua discussão exigiria tantas laudas que ninguém agüentaria. Assim, vamos fingir que é esse popularmente conhecido e falar um pouco desse amor à “distância”. Eu não faço muita fé nele. A paixão e o amor precisam do encantamento que o outro desperta na gente, mas não apenas através da idéia, não apenas através dos desejos “inspirados”. Precisamos, também, do tato, do cheiro, da presença real do outro, para que seja possível essa troca que nos faz mais humanos. Roberto Freire diz que anda solta por aí a ideologia do sacrifício, e que acabamos acreditando que amar significa perder substancialmente a liberdade. E que o amor platônico, esse sim, aprisiona, pois é incompleto... Eu fico pensando cá com meus botões... a liberdade não é o outro quem tira da gente. Acabamos sendo nossos verdadeiros carcereiros, agrilhoando-nos ao sentimento amoroso mesmo quando não nos é pedido isso. Ficamos presos a uma idéia e não conseguimos nos libertar do que não tem concretude.
E, voltando ao livro “Ame e dê vexame”, Freire afirma que o verdadeiro amor liberta. Diz: ”Porque te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários. E eu brinco, dando um palpite para acrescentar – E, sendo desnecessários, seremos livres!
Pensando bem... Será mesmo? Para evitar maiores riscos, melhor orar aos céus, de maneira bem abrangente - Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós!