UM TRIÂNGULO AMOROSO
Maio de 2012
Não tenho escrito,
e não é por falta de assunto ou vontade.
A velocidade da vida acaba atrapalhando.. ou servindo de desculpa? E me volta a pergunta de sempre - que impulso
me leva a escrever? Tento entender, primeiro, quem desejo
atingir, quem devo eleger como leitor.
Depois, o que quero fazer com as palavras... as dúvidas são
enormes. O que tenho certeza é que o
tema não se esgota em mim. Todos os que
lidam com a literatura, com o escrever, mesmo que sem maiores pretensões,
continuam a perguntar o que nem grandes pensadores puderam responder. E para deixar tudo ainda mais complexo, temos
a tal literatura silenciosa do “não”. Que escritor não sofreu com a pulsão negativa e passou anos sem escrever –
a angústia da folha em branco. Por que escrever
? Por que não escrever ?
Fã
ardorosa de Rubem Braga, emocionei-me com a crônica que escreveu há mais de
cinquenta anos, que não perdeu a força e a atualidade. Dedicou duas laudas à confissão - Meu ideal
seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente
naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto,
que chegasse a chorar e dissesse – “ai, meu Deus, que história mais engraçada!”
Completou a idéia, dizendo que
queria que sua história fosse como um raio de sol, quente, vivo, em sua vida de
moça reclusa, doente, de luto.
Braga foi além, dizendo que
gostaria que um casal mal-humorado, que estivesse em casa sem falar um com o
outro, fosse ler sua história. Quando o
marido começasse a rir, a mulher, curiosa, também iria ler... igualmente seu
riso despertaria... e “ficassem
os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que, um ouvindo
aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem
os dois a alegria perdida de estarem juntos.”
Pois é, seria algo absurdamente maravilhoso
fazer isso... ajudar o outro a reencontrar a alegria que se perdeu lá
atrás. Mas nem sempre um bom livro faz isso. Pode trazer de volta uma dúvida existencial,
ou lembranças de um passado não tão querido, enfim, nem só de flores é feita a
literatura.
Porém, quem
diria? Depois de velha, envolvi-me num
triângulo amoroso. Pois é, estou
dividida entre Rubem Braga e Montaigne.
Cada hora, fico com um. O
primeiro a me encantar foi o Rubem. Como
adoro escrever crônicas e ele foi um mestre nessa arte, fácil explicar o
envolvimento. Devo esclarecer que não
estou volúvel a ponto de trocar meu
objeto da paixão, mas de acumular, justamente em terreno onde Vinicius de
Moraes bem dizia que menos vale mais!
Rosa apresentou-me Montaigne quando brilhantemente traduziu “Os Ensaios”
em 2010. Foi atração fatal, daquelas dignas de um romance, o que torna isso um
caso para Freud estudar e tratar.
Uma
das vantagens de se tornar uma pessoa idosa, dentre as poucas vantagens, vale
confessar, é que a autocensura vai passear em outras freguesias. E, graças a essa liberdade, consegui perceber
muitas semelhanças entre o que o célebre ensaísta pensava sobre o escrever e o
que se passa pela minha cabeça insana.
A
culpa para essa pretensão é da introdução ao livro feita pelo crítico literário
Erich Auerbach, que me fez encontrar muitos pontos em comum com o famoso
francês. Em primeiro lugar, Montaigne
dava voz às forças internas que o dominavam. As minhas estão sempre em ebulição,
e devo constantemente liberá-las para que não entrem em ponto de fissão nuclear
e eu me divida em pedaços menores... que provavelmente continuariam a dar muito
trabalho.
Volto
ao assunto principal - Montaigne começou a escrever para falar de suas próprias
experiências, sobre o que via e lia. Todos concordam que nao perco a mania de
dar palpite sobre tudo que vejo, ouço ou percebo. Mas esses pensamentos, os dele, segundo
Auerbach, não são importantes, na verdade, para nenhuma disciplina
específica. Considero o mesmo em relação
aos meus delírios. São idéias de leigos, e mesmo quando parecemos estar dizendo
algo coerente, nada vai além da expressão pura e simples do que se passa em
nossas cabeças, sempre com base em um raciocínio multifacetado, pouco
especializado e profundamente subjetivo.
No meu caso, diria – estupidamente subjetivo.
Seus
escritos nos mostram que ele pula de um assunto para outro sem a menor
cerimônia, capturado por uma palavra qualquer que lhe desperta interesse em
outra coisa e, sobre essa novidade, começa a discorrer. Alguma coincidência com
as croniquetas?
E
aí vai a comprovação de nossa completa semelhança = ousamos dizer tudo o que
nos vem à cabeça, na certeza de que a coesão da nossa personalidade será forte
o suficiente para dar razoável unidade ao todo.
Como
era gênio, escreveu e ficou. Como
pessoa normal, imaginativa posso até concordar, vou passar de fininho, e só os
mais próximos terão lido minhas croniquetas.
Porém, nosso objetivo terá sido o mesmo - escrever para nós mesmos. Se
os outros, por ventura, descobrirem em nossa obra alguma utilidade e prazer,
tanto melhor.
Entre
les deux, mon coeur balance. Rubem ou Montaigne? Na verdade, se estiver me sentindo abnegada,
dadivosa, sou Rubem e vou desejar
escrever uma história muito engraçada, mas muito engraçada para fazer alguém
feliz. Se, ao contrário, não estiver tão
preocupada com os leitores e desejar escrever para me satisfazer e dar vazão às
minhas forças vitais, estou mais para Montaigne. Pois é, no final das contas, não posso abrir
mão de qualquer deles. Fazem parte de
mim.