quinta-feira, 31 de maio de 2012


UM TRIÂNGULO AMOROSO
Maio de 2012

             Não tenho escrito, e não é por falta de assunto ou vontade.  A velocidade da vida acaba atrapalhando.. ou servindo de desculpa?  E me volta a pergunta de sempre - que impulso me leva a escrever?   Tento entender, primeiro, quem desejo atingir, quem devo eleger como leitor.  Depois, o que quero fazer com as palavras... as dúvidas são enormes.  O que tenho certeza é que o tema não se esgota em mim.  Todos os que lidam com a literatura, com o escrever, mesmo que sem maiores pretensões, continuam a perguntar o que nem grandes pensadores puderam responder.  E para deixar tudo ainda mais complexo, temos a tal literatura silenciosa do “não”.  Que  escritor não sofreu com  a pulsão negativa e passou anos sem escrever – a angústia da folha em branco.  Por que escrever ?  Por que não escrever ?
                   Fã ardorosa de Rubem Braga, emocionei-me com a crônica que escreveu há mais de cinquenta anos, que não perdeu a força e a atualidade.  Dedicou duas laudas à confissão -  Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto, que chegasse a chorar e dissesse – “ai, meu Deus, que história mais engraçada!” Completou a idéia, dizendo que queria que sua história fosse como um raio de sol, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, doente, de luto.
                   Braga foi além, dizendo que gostaria que um casal mal-humorado, que estivesse em casa sem falar um com o outro, fosse ler sua história.  Quando o marido começasse a rir, a mulher, curiosa, também iria ler... igualmente seu riso despertaria... e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que, um ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.”
             Pois é, seria algo absurdamente maravilhoso fazer isso... ajudar o outro a reencontrar a alegria que se perdeu lá atrás.  Mas  nem sempre um bom livro faz isso.  Pode trazer de volta uma dúvida existencial, ou lembranças de um passado não tão querido, enfim, nem só de flores é feita a literatura.
                   Porém, quem diria?   Depois de velha, envolvi-me num triângulo amoroso.   Pois é, estou dividida entre Rubem Braga e Montaigne.  Cada hora, fico com um.  O primeiro a me encantar foi o Rubem.  Como adoro escrever crônicas e ele foi um mestre nessa arte, fácil explicar o envolvimento.   Devo esclarecer que não estou volúvel  a ponto de trocar meu objeto da paixão, mas de acumular, justamente em terreno onde Vinicius de Moraes bem dizia que menos vale mais!   Rosa apresentou-me Montaigne quando brilhantemente traduziu “Os Ensaios” em 2010. Foi atração fatal, daquelas dignas de um romance, o que torna isso um caso para Freud estudar e tratar. 
                   Uma das vantagens de se tornar uma pessoa idosa, dentre as poucas vantagens, vale confessar, é que a autocensura vai passear em outras freguesias.  E, graças a essa liberdade, consegui perceber muitas semelhanças entre o que o célebre ensaísta pensava sobre o escrever e o que se passa pela minha cabeça insana. 
                   A culpa para essa pretensão é da introdução ao livro feita pelo crítico literário Erich Auerbach, que me fez encontrar muitos pontos em comum com o famoso francês.   Em primeiro lugar, Montaigne dava voz às forças internas que o dominavam. As minhas estão sempre em ebulição, e devo constantemente liberá-las para que não entrem em ponto de fissão nuclear e eu me divida em pedaços menores... que provavelmente continuariam a dar muito trabalho. 
                   Volto ao assunto principal - Montaigne começou a escrever para falar de suas próprias experiências, sobre o que via e lia. Todos concordam que nao perco a mania de dar palpite sobre tudo que vejo, ouço ou percebo.  Mas esses pensamentos, os dele, segundo Auerbach, não são importantes, na verdade, para nenhuma disciplina específica.  Considero o mesmo em relação aos meus delírios. São idéias de leigos, e mesmo quando parecemos estar dizendo algo coerente, nada vai além da expressão pura e simples do que se passa em nossas cabeças, sempre com base em um raciocínio multifacetado, pouco especializado e profundamente subjetivo.  No meu caso, diria – estupidamente subjetivo.
                   Seus escritos nos mostram que ele pula de um assunto para outro sem a menor cerimônia, capturado por uma palavra qualquer que lhe desperta interesse em outra coisa e, sobre essa novidade, começa a discorrer. Alguma coincidência com as croniquetas?
                   E aí vai a comprovação de nossa completa semelhança = ousamos dizer tudo o que nos vem à cabeça, na certeza de que a coesão da nossa personalidade será forte o suficiente para dar razoável unidade ao todo.
                   Como era gênio, escreveu e ficou.   Como pessoa normal, imaginativa posso até concordar, vou passar de fininho, e só os mais próximos terão lido minhas croniquetas.   Porém, nosso objetivo terá sido o mesmo - escrever para nós mesmos. Se os outros, por ventura, descobrirem em nossa obra alguma utilidade e prazer, tanto melhor.
                   Entre les deux, mon coeur balance.  Rubem ou Montaigne?  Na verdade, se estiver me sentindo abnegada, dadivosa, sou Rubem e vou  desejar escrever uma história muito engraçada, mas muito engraçada para fazer alguém feliz.  Se, ao contrário, não estiver tão preocupada com os leitores e desejar escrever para me satisfazer e dar vazão às minhas forças vitais, estou mais para Montaigne.  Pois é, no final das contas, não posso abrir mão de qualquer deles.  Fazem parte de mim.